Tito Lotufo & Letícia Costa-Lotufo

A costa brasileira estende-se desde o Arroio Chuí, no extremo sul do país, até o Cabo Orange, margeando o rio Oiapoque, em um percurso marcado por embaiamentos, cabos e reentrâncias que chega a mais de 9.000 km, predominantemente no sentido norte-sul1. A costa é acompanhada em toda sua extensão pela plataforma continental, que é bastante larga desde o sul da Bahia até o extremo sul do continente, mas é bastante estreita em quase todo o nordeste do Brasil. Da quebra da plataforma continental se tem então o talude e o sopé, caracterizados por um relevo drástico onde o assoalho marinho se aprofunda rapidamente, chegando então às planícies abissais, com mais de 3000m de profundidade.

Figura 1: A “Amazônia Azul”, que inclui o Mar Territorial e a Zona Econômica Exclusiva. O Brasil pleiteia na ONU a extensão da plataforma continental, ampliando suas águas jurisdicionais. Fonte: Marinha do Brasil.

Figura 1: A “Amazônia Azul”, que inclui o Mar Territorial e a Zona Econômica Exclusiva. O Brasil pleiteia na ONU a extensão da plataforma continental, ampliando suas águas jurisdicionais. Fonte: Marinha do Brasil.

Fazem parte do território brasileiro ainda alguns conjuntos de ilhas oceânicas, localizadas fora da plataforma continental. Atol da Rocas, Arquipélago de Fernando de Noronha, Arquipélago de São Pedro e São Paulo, e Arquipélago de Trindade e Martin Vaz garantem ao Brasil uma vasta área de mar territorial e Zona Econômica Exclusiva, formando junto com as águas ao largo do continente o que a Marinha do Brasil passou a chamar de “Amazônia Azul”(Figura 1), buscando um contraponto à Amazônia terrestre2.

Dentro desta área extensa, de cerca de 3,6 milhões de Km2, há também uma grande diversidade de ecossistemas e hábitats. Tal diversidade inclui os salgados, no sul do país, que passam a ser substituídos pelos manguezais em toda a costa tropical, a partir de Santa Catarina, além de costões rochosos, extensas praias arenosas, recifes de diversos tipos, bancos de fanerógamas, além de fundos inconsolidados de composição variável. Isso potencializa ainda mais a riqueza de espécies das águas marinhas brasileiras, e confere um número considerável de espécies endêmicas (Figura 2).

Como resultado de importantes iniciativas em âmbito nacional para inventário da diversidade marinha brasileira, incluindo o Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira – PROBIO, REVIZEE (Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva), SISBIOTA, o programa Biota-FAPESP, entre outros; o Brasil hoje conhece muito melhor a sua biodiversidade, mas ainda se tem enormes lacunas que ainda precisam ser preenchidas.

Figura 2 – A: Mussismilia hispida, coral pétreo endêmico do Brasil; B: Narcissia trigonaria, uma estrela do mar do Atlântico ocidental; C: Eudistoma vannamei, uma ascídia endêmica do nordeste do Brasil; D: Prognathodes obliquus, um peixe-borboleta endêmico do Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Créditos: Tito Lotufo.

Figura 2 – A: Mussismilia hispida, coral pétreo endêmico do Brasil; B: Narcissia trigonaria, uma estrela do mar do Atlântico ocidental; C: Eudistoma vannamei, uma ascídia endêmica do nordeste do Brasil; D: Prognathodes obliquus, um peixe-borboleta endêmico do Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Créditos: Tito Lotufo.

Toda essa diversidade de recursos biológicos resulta em inúmeras possibilidades de uso para o desenvolvimento de produtos e serviços com aplicações diversas na indústria, na saúde humana, nos setores voltados para a aquicultura e pesca, além do manejo de ecossistemas (Figura 3). Há que se ressaltar que, enquanto o valor da biodiversidade marinha é indiscutível, o uso pautado na sustentabilidade permanece como a maior preocupação relacionada, em vista dos vários exemplos desastrosos da exploração de recursos marinhos.

A forma de utilização mais antiga desses recursos é, sem dúvida, a produção de alimentos por meio da pesca. A atividade pesqueira fornece alimento e promove o sustento de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, mas representa um grande desafio em termos da sua sustentabilidade3-5.

Figura 3 – Abordagem integrada para o uso e aplicações da biodiversidade marinha

Figura 3 – Abordagem integrada para o uso e aplicações da biodiversidade marinha

Mas o potencial de uso vai muito além da pesca e aquicultura voltada para a alimentação, e envolve desde alternativas a produção de biocombustíveis até o reconhecimento dos organismos marinhos como produtores de substâncias que podem ser fortes aliadas no tratamento de doenças, contribuindo para o desenvolvimento de medicamentos. É importante destacar ainda o uso dos recursos marinhos na indústria de cosméticos, que movimenta anualmente mais de U$170 bilhões de dólares, e tem uma crescente demanda por produtos de origem natural. Nesse mercado, as algas tem um papel central, com uma movimentação anual estimada em U$ 6 bilhões de dólares. Os usos são diversos, sendo liderados de longe pela indústria de alimentos, com a exploração de alginatos, ágar e carragenana. Mas a indústria de cosméticos tem um papel importante e cresce anualmente, envolvendo principalmente produtos com uso no combate ao envelhecimento, doenças relacionadas a pigmentação, uso em protetores solares e hidratantes6. Nesse cenário o cultivo em algas costeiras responde em grande parte pela demanda de exploração. Mundialmente existem mais de 7890 patentes com algas marinhas, e o Japão lidera o ranking de países com o depósito de 3433 patentes, enquanto que no Brasil apenas 29 patentes tinham sido depositadas até 20097.

Com relação às aplicações terapêuticas, a complexa química dos organismos marinhos há muito intriga e inspira cientistas na busca por novas substâncias de interesse farmacológico. Temos atualmente 8 substâncias de origem marinha em uso clínico e dezenas de outros em fase de testes pre-clínicos e clínicos8,9. Dois desses medicamentos nos ensinaram muito sobre os principais gargalos no desenvolvimento de medicamentos a partir da diversidade marinha, o alcalóide Trabectadina ou Yondelis®, originalmente descrito na ascídia Ecteinascida turbinata, e o merisilato de eribulina ou Halaven® desenvolvido a partir do macrolído halicondrina B, isolado da esponja Halichondria okadai.

O Yondelis® (trabectedina ou Ecteinascidina 743, ET-743) foi descrito em 1990 nos Estados Unidos, e teve sua aprovação para uso clínico no tratamento de sarcomas de tecidos moles pela EMEA em 2007. A natureza do seu mecanismo de ação sem dúvida foi o grande impulsor do seu desenvolvimento como medicamento, enquanto que a dificuldade da obtenção de quantidades suficientes da substância foi a maior dificuldade a ser superada. A substância apresenta atividade em tumores com resistência a múltiplas drogas causando lesão no DNA das células tratadas, levando à morte por apoptose. Em relação a sua obtenção, dada a complexidade da síntese da molécula, os esforços foram concentrados na aquicultura da ascídia. A aquicultura foi feita com sucesso, mas é importante salientar que o rendimento da ET-743 pode ser menor que 0.0001% quando a extração é realizada a partir da ascídia cultivada. Deste modo, mesmo com o cultivo de 250 toneladas de ascídia, a complexidade do processo de extração, isolamento e o baixo rendimento reduziam a viabilidade comercial do fármaco. Foi apenas com a descoberta de um processo de semisíntese a partir da cianosafracina B, obtida a partir da fermentação da bactéria Pseudomonas fluorescens, que a comercialização do Yondelis® pode ser viabilizada10. Vale ressaltar que o Yondelis é comercializado pela empresa espanhola PharmaMar, que realiza exclusivamente o desenvolvimento de medicamentos a partir de produtos marinhos.

A história da halicondrina nos mostra como a compreensão aprofundada do mecanismo de ação da molécula e da relação estrutura-atividade pode ser fundamental na resolução do suprimento da substância para o processo de pesquisa e desenvolvimento do medicamento. A halicondrina foi primeiramente descrita por pesquisadores japoneses a partir da esponja Halichondria okadai, coletada no pacífico próximo à costa do Japão em 1985. A partir daí vários compostos desta família foram isolados de outras esponjas, incluindo a esponja de profundidade Lissodendoryx sp. coletada na Nova Zelândia, que produzia cerca de 10 vezes mais que as esponjas do gênero Halichondria. Os estudos da atividade biológica mostravam-se extremamente promissores, sendo a tubulina o alvo de ação dessa classe de compostos. O Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos recomendou que a molécula entrasse em estudos pré-clínicos já em 1992. Até então toneladas das esponjas produtoras já tinham sido coletadas, e as estimativas para a condução de testes clínicos indicavam a necessidade de 1000 a 5000t de esponja, quantidade muito superior aos estoques estimados para a espécie. A aquicultura foi a primeira opção, mas a produção dos compostos, já pequena, caía drasticamente nas esponjas de cultivo. A síntese da substância foi feita por pesquisadores da Universidade de Harvard, que licenciaram sua tecnologia para a indústria farmacêutica japonesa Eisai. A partir de estudos da relação estrutura-atividade e da síntese de substâncias com estrutura menos complexas, mas que retinham a potente atividade biológica, foi possível em 2010, a aprovação do Halaven® que continha como princípio ativo o merisilato de eribulina11,12.

Sendo assim, estas histórias nos ensinaram que a busca por alternativas de produção das substâncias bioativas seria a única forma de viabilizar a comercialização desses produtos. Além disso, no começo deste século, a descoberta de compostos previamente isolados de invertebrados marinhos em microrganismos simbiontes ou isoladas de sedimentos do assoalho marinho, a possibilidade de cultivo desses microrganismos e o reconhecimento de uma diversidade microbiana inestimável associada ao ambiente marinho surgem como uma resposta a uma demanda crescente por inovação terapêutica, principalmente em doenças como o câncer e doenças infecciosas. Há ainda que se mencionar a possibilidade de realização de mineração gênica em estudos a partir do DNA metagenômico, possibilitando a produção de compostos oriundos de microrganismos não-cultiváveis em sistemas heterólogos.

No Brasil, a história dos produtos naturais marinhos começou timidamente na década de 196013, mas nos últimos anos observamos um crescimento exponencial do interesse de grupos de pesquisa e do próprio Governo Brasileiro no tema, visando o conhecimento e a exploração sustentável desse recurso. Em 2007, foi lançada a Proposta Nacional de Trabalho (PNT) BIOMAR (programa de levantamento e avaliação do potencial biotecnológico da biodiversidade marinha) coordenada pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), inaugurando uma série de iniciativas de financiamento na área. Como resultado deste esforço, já podemos observar resultados concretos, com um aumento exponencial da produção científica, estruturação de redes de pesquisa, formação de recursos humanos e depósitos de patentes. Cabe enfatizar que o Brasil tem uma das leis mais restritivas de acesso ao patrimônio genético, o que talvez seja o nosso maior entrave no desenvolvimento de produtos e serviços a partir da nossa biodiversidade.

Certamente devemos reconhecer que o momento é extremamente oportuno para a discussão do tema e para desenhar estratégias sustentáveis de exploração desses recursos. Não podemos incorrer em erros antigos, onde a obtenção de produtos era pautada numa prática exploratória irresponsável, sem preocupação com o impacto ambiental dessas atividades. Estamos em um momento onde fica claro que não conhecemos adequadamente nossa diversidade, mas reconhecemos seu valor inestimável e, portanto, é fundamental traçar programas que envolvam equipes multidisciplinares para o contínuo esforço do conhecimento da nossa biodiversidade, incluindo seu potencial uso como alimento ou fonte de produtos biotecnológicos.

Referências

1. Ab’Saber, A. N. Litoral do Brasil. 288 (Metalivros, 2008).

2. Torres, L. C. & Ferreira, H. de S. AMAZÔNIA AZUL: a fronteira brasileira no mar. O Pasadiço 3–5 (2005).

3. Worm, B. et al. Rebuilding global fisheries. Science 325, 578–85 (2009).

4. Myers, R. A. & Worm, B. Rapid worldwide depletion of predatory fish communities. Nature 423, 280–283 (2003).

5. Pauly, D. et al. Towards sustainability in world fisheries. Nature 418, 689–95 (2002).

6. Wang, H. D., Chen, C., Huynh, P. & Chang, J. Bioresource Technology Exploring the potential of using algae in cosmetics. Bioresour. Technol. in press, 1–8 (2014).

7. Mazarrasa, I., Olsen, Y. S., Mayol, E., Marbà, N. & Duarte, C. M. Global unbalance in seaweed production, research effort and biotechnology markets. Biotechnol. Adv. 32, 1028–1036 (2014).

8. Costa-Lotufo, L. V, Wilke, D. V., Jimenez, P. C. & Epifanio, R. de A. Organismos marinhos como fonte de novos fármacos: Histórico & perspectivas. Quim. Nova 32, 703–716 (2009).

9. Mayer, A. M. S. Marine Pharmaceuticals: The Clinical Pipeline. at <http://marinepharmacology.midwestern.edu/clinPipeline.htm>

10. Cuevas, C. & Francesh, A. Development of Yondelis (trabectedin, ET-743). A semisynthetic process solves the supply problem. Nat. Prod. Reports 26, 322–337 (2009).

11. Jackson, K. L., Henderson, J. A. & Phillips, A. J. The halichondrins and E7389. Chem. Rev. 109, 3044–3079 (2009).

12. Swami, U., Chaudhary, I., Ghalib, M. H. & Goel, S. E. Eribulin – A review of preclinical and clinical studies. Crit. Rev. Oncol. Hematol. 81, 163–184 (2012).

13. LOTUFO, L. V. C. et al. in Lead Mol. from Nat. Prod. Discov. New Trends (Khan, M. & Ather, A.) 185–200 (Elsevier, 2006).