Biotecnologia azul: desafios e oportunidades

Biotecnologia azul: desafios e oportunidades

Leticia Veras Costa-Lotufo, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, e Tássia Biazon, pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano

Letícia Lotufo

Há milênios, a humanidade retira recursos do mar para o seu proveito, como o sal de cozinha e o pescado, consumidos diariamente ao redor do mundo. Mas, você sabia que um dos fármacos para o tratamento contra o HIV, o Retrovir®, foi desenvolvido a partir de uma substância isolada da esponja caribenha Cryptotethya crypta ou mesmo que o sangue do caranguejo-ferradura (Limulus polyphemus) é usado há décadas para detectar contaminantes ambientais? Esses são alguns exemplos de usos da recente área de conhecimento denominada Biotecnologia Azul ou Biotecnologia Marinha, que envolve a aplicação da ciência e da tecnologia em organismos marinhos para a produção de conhecimento, bens e serviços para a sociedade.

Tassia Biazon

Os resultados dessas aplicações envolvem a transformação de moléculas ou biomassa obtida de microrganismos, algas, invertebrados e vertebrados, em produtos nutracêuticos (alimentícios), farmacêuticos, cosméticos, entre outros. Alguns exemplos são substâncias para produção de medicamentos, extração de colágeno de esponjas, controle de pragas, algas com funções nutritivas e muito mais! Além disso, os serviços ecossistêmicos oferecidos pela biodiversidade marinha têm um papel importante na restauração e conservação do ambiente marinho. Sendo assim, existem múltiplas oportunidades de empreender e inovar utilizando os recursos genéticos marinhos.

E estes são variados, já que os organismos marinhos vivem em condições ambientais bem distintas dos organismos terrestres, como a elevada pressão e baixa luminosidade na maior parte do mar, conferindo a eles um metabolismo peculiar. Dos 31 filos animais conhecidos, quase metade são exclusivamente marinhos, mas, atualmente, conhecemos apenas cerca de 10% das espécies marinhas no mundo, considerando as estimativas apresentadas por Mora e colaboradores em 2011, no estudo denominado How many species are there on earth and in the ocean?. No Brasil, não há dados concretos sobre o tamanho da biodiversidade marinha, mas há uma expectativa de elevado grau de endemismo, dada à diversidade de habitats e à extensão e às peculiaridades da nossa costa.

Neste contexto, é fundamental investir no conhecimento da biodiversidade marinha, sendo que nas últimas décadas vários programas foram lançados com finalidade de inventariá-la em âmbito mundial, como o Censo da Vida Marinha, e nacional, como o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), Programa Nacional da Diversidade Biológica (Pronabio) e Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota), e estadual, como o Programa Biota Fapesp. Esse esforço trouxe à luz do nosso conhecimento centenas de espécies dos mais diversos grupos, de bactérias a peixes, mas também revelou lacunas importantes nesse conhecimento.

Dentre essas lacunas há as oportunidades de empreender com os recursos genéticos marinhos, o que envolve desde coisas tão simples como divulgar conhecimento existente até o complexo processo de desenvolver bioprodutos como um medicamento para uso no tratamento do câncer. Neste contexto, Erwin e colaboradores em 2010, conforme o artigo The pharmaceutical value of marine biodiversity for anti-cancer drug discovery, ofereceram uma estimativa monetária para o valor farmacêutico da biodiversidade marinha a partir do potencial de descoberta de medicamentos para tratar o câncer. Ponderando alguns cenários, os autores revelaram que pode haver até 600 mil substâncias químicas em organismos marinhos com essa função, enquanto mais de 90% estariam aguardando sua descoberta. Essa diversidade química, proveniente de filos animais e microorganismos como bactérias e fungos, pode levar ao desenvolvimento de mais de 200 novos medicamentos anticâncer, o que pode equivaler a um valor entre U$ 563 bilhões e U$ 5,69 trilhões.

O modelo utilizado pelos autores pressupôs, com base em informações existentes, que as descobertas pendentes seguiriam as tendências observadas para as moléculas até então descobertas e fármacos previamente desenvolvidos. Assim, deve-se considerar também o viés de amostragem, que sem dúvida afeta esse resultado, uma vez que os mares em regiões temperadas têm sido sistematicamente investigados, representando a fonte de cerca de 62% dos bioprodutos marinhos. Já as regiões tropicais, por sua vez, têm sido historicamente pouco estudadas. Há que se ressaltar que na época em que esse trabalho foi publicado existiam apenas 2 medicamentos baseados em produtos naturais marinhos aprovados para uso clínico contra o câncer. Mas na última década esse número subiu para 12, o que supera muito as previsões feitas originalmente. No Brasil, infelizmente, temos apenas dois medicamentos baseados em produtos naturais aprovados para uso clínico, o Acheflan como anti-inflamatório e o Heleva para disfunção erétil.

Dois pilares centrais que devem ser incorporados para avaliar o sucesso de iniciativas de empreendedorismo no ambiente marinho não foram considerados neste estudo. Eles incluem o estímulo a cadeias produtivas com envolvimento das comunidades locais, portanto incorporando o ganho econômico-social, e a promoção da sustentabilidade, minimizando os impactos ambientais dessa atividade, elementos alinhados com os objetivos da Década do Oceano.

Há algumas iniciativas brasileiras ganhando destaque, como o cultivo de algas para a indústria de alimentos e de cosméticos no nordeste, mostrando que é possível criar um negócio ambientalmente e socialmente sustentável no ambiente marinho. Esse é o exemplo do projeto “Mulheres de Corpo e Alga”, desenvolvido na comunidade da Barrinha, em Icapuí, Ceará, que coloca em prática o cultivo sustentável de algas no lugar do extrativismo predatório. Há também a empresa Agar Brasileiro, que desenvolve a produção de algas de diferentes gêneros ao longo do litoral dessa região, como Gracilaria, Kappaphycus, Hypnea e Gigartina. Além disso, pode-se citar o potencial de produção de microalgas de origem marinha para a produção de biodiesel pelo Centro de Pesquisa da Petrobras (Cenpes).

A exemplo da Floresta Amazônica e sua riquíssima diversidade, há muito potencial biotecnológico a ser explorado no mar brasileiro. Para tanto, é necessário promover o desenvolvimento científico, o que requer identificar um problema ou uma demanda da sociedade, planejar estratégias para reunir evidências que subsidiem conclusões sobre o tema e, buscar um financiamento. E esse tem sido um ponto crítico no Brasil. Embora existam programas de financiamento voltados ao pequeno empreendedor no Brasil (Pipe, Pite, Centelha etc.), um caminho para potencializar a biotecnologia marinha por aqui é diminuir a lacuna existente entre universidades e indústrias. O projeto de produção de biomassa de Hypnea pseudomusciformis para indústria de bioestimulantes de crescimento vegetal aplicados à agricultura é um exemplo de pesquisa inovadora em pequena empresa (Pipe) apoiado pela Fapesp.

O oceano é um manancial de biodiversidade que pode trazer diversos benefícios para a humanidade. Mas para que esse potencial se realize precisamos proteger essa biodiversidade e ampliar a nossa capacidade de estudá-la e utilizá-la sustentavelmente. Para isso, precisamos de políticas de estado, estruturantes e duradouras, voltadas para a conservação da biodiversidade marinha e para a produção de ciência e tecnologia, que venham a promover uma transição efetiva para essa nova realidade, alinhando o oceano e a sociedade.